NO TRIUNFO DO ESPÍRITO, O ESPÍRITO DO TRIUNFO

                                                                                           por João Máximo

Engana-se quem pensa estar exaltando um paratleta ao dizer que já é uma vitória o simples fato de poder competir no judô, na natação, no atletismo ou em qualquer das modalidades de esporte para pessoas com deficiência. Nas malhas desse engano pode cair até quem, com quase meio século de experiência no esporte olímpico, não tem nenhuma no paraolímpico. Porque a primeira surpresa que se pode ter ao conhecer um desses heróis sem limites é justamente aprender que, no seu dicionário, ou no seu modo de enfrentar a vida, competir e vencer não são sinônimos. Não se aplica a ele a velha, idealística, mas discutível máxima do barão francês criador dos jogos olímpicos da era moderna, principalmente o trecho onde está dito que o importante na vida não é o triunfo, mas o esforço para alcançá-lo. Um paratleta consciente sabe que esse esforço não passa de um meio para chegar ao único fim que realmente lhe importa: o triunfo.
É o que se sente em cada canto do prédio onde funciona o IBDD. A começar pelo corredor de entrada, em cujas paredes estão afixados dizeres que defendem os direitos de ser e a importância de vencer. Num deles, o deficiente – ou, por que não? qualquer pessoa – é conclamado a bater-se pelo direito de ser... humano, integrado, cidadão, competente, competitivo, eficiente, participativo, criativo, profissional, completo, único, indispensável. Em outros dizeres, ele é instado a vencer... a culpa, a apatia, o desalento, o conformismo, o preconceito, as dificuldades, os desafios, o desconhecimento, a exclusão, a diferença, a concorrência, os limites. Vencer, enfim, na vida. O lema dos Jogos Paraolímpicos de Atlanta, em 1996, ressaltava o triunfo do espírito humano. Pois no IBDD a inversão cabe perfeitamente. É o espírito do triunfo "o vencer acima do apenas competir", que prevalece entre seus atletas. Todos eles têm na ponta da língua uma palavra que contrarie a ingênua crença de quem pensar o contrário. Antônio Tenório, por exemplo, não deve ao acaso ou a golpes de sorte sua coleção de medalhas de ouro no judô para cegos. Trabalho, determinação, suor, compenetração e, mais que tudo, vontade de vencer, estes são os seus atributos. Orgulha-se deles. E permite-se um gracejo ao dar sua versão paraolímpica para a máxima do barão francês O importante é competir, sim, mas, se não ganhar medalha, entra na porrada.
Luiz Cláudio Pereira, atual assessor de Teresa Costa d'Amaral, superintendente do IBDD, e na linha de frente do movimento pela transformação da legislação que trata dos direitos das pessoas com deficiência, diz o mesmo com outras palavras: Vencer é de fato essencial. Veja o exemplo da natação. É um esporte para o qual são necessários braços e pernas e, no entanto, uma vítima da talidomida, contando apenas com os movimentos do tronco, bate o recorde mundial. Se fosse só para cair na água e provar que pode nadar, a vitória seria somente dele. Contudo, indo além, conquistando uma medalha, a vitória passa a ter significado maior para todos os paratletas. Prova a todos nós, prova a cada um de nós e prova aos não deficientes que nossos limites são infinitos. A vitória não pode ser vista como o feito de apenas um. Quando o resultado é registrado, quando é afixado no placar, quando vai para o livro de recordes, vira História. E tem valor tão coletivo quanto individual. Por isso temos que nos imbuir do espírito do triunfo, pois este, o triunfo, é o único resultado que não será esquecido.
Luiz é um líder. Mais que líder, um símbolo. Mais que símbolo, dos raros seres humanos que transformaram em lição de vida a incrível experiência de ter passado por todas, rigorosamente todas as etapas de nossa história: o jovem pobre que por milagre tem acesso ao elitizado mundo do judô, o promissor faixa marrom, o acidente, a sobrevivência, os dois anos de recuperação num hospital, o lento processo de compreensão, conscientização, aceitação e superação da tetraplegia, a coragem de voltar ao esporte, o campeão, as medalhas de ouro paraolímpicas, o depois dedicado a lutar não só por si mesmo, mas pelos 18 milhões de deficientes do país. Para que, readquirindo os direitos que a fatalidade lhes roubou, cada um deles conquiste seu espaço, sua inclusão social, sua cidadania, sua vida. Em resumo, triunfo.
Líder, símbolo, homem raro. Que acredita ter tirado pelo menos alguma coisa de positivo de cada tropeço eventualmente sofrido, incluindo o acidente. É difícil saber se Luiz já nasceu corajoso ou se a coragem é algo que adquiriu repensando a vida em seus 30 anos em cadeira de rodas. Quem o viu em Brasília, duelando de peito aberto com os deputados que pretendem criar um estatuto para a pessoa com deficiência, garante que a coragem já veio ao mundo com ele. Mas não há dúvida de que ela cresce à medida que ameaças como aquela (a de um estatuto para converter cada pessoa com deficiência num "cidadão diferente") exijam dele coragem em dobro.
Aos 16 anos, bastava-lhe a coragem para entrar no tatame e desafiar os melhores judocas da categoria. Com algum custo, e muito pelo talento que revelara assim que abraçou o judô, pôde frequentar de graça uma academia onde aprendeu o suficiente para aspirar à faixa preta. Até que, no dia 29 de dezembro de 1977, perdeu para o infortúnio sua última luta: ao jogar para o alto o pesado adversário, este rodou e caiu sobre seu pescoço. O traumatismo raquimedular com coágulo sanguíneo pode ter sido agravado durante o primeiro socorro, quando a inabilidade de quem o atendeu forçou-o a um indesejado movimento de cabeça. Diagnóstico: tetraplegia. Prognóstico: uma vida vegetativa. Os médicos sequer acreditavam que voltasse a sentar-se. Sem equilíbrio, braços e pernas paralisados, cabeça e pescoço não se fixando, só conseguia mover os olhos. Enfim, aos 16 anos, triste perspectiva de vida. Por dois anos Luiz ficou internado no centro de recuperação da ABBR. Por maior que tenha sido a ajuda ali recebida, de médicos, enfermeiros e fisioterapeutas, a nova vida que conquistou deve-se principalmente a ele mesmo. Uma vida em cadeira de rodas, realça.
Deve-se a ele mesmo porque a luta que venceu é a do tetraplégico que se convence da necessidade de reconstruir seu mundo interior psicológica e emocionalmente ao mesmo tempo que remedia o corpo. Luiz não seria o homem que é se, enquanto trabalhasse a recuperação física, lenta, difícil, exigindo-lhe uma dedicação que tangencia o sacrifício, não cumprisse as não menos árduas etapas de reedificação da mente e da alma: compreender como foi o acidente, saber da extensão da lesão, ter consciência de que nunca mais seria o mesmo, inteirar-se de como a sociedade poderá tratá-lo, aceitar essa condição sem revolta e acreditar que há sempre um modo de recomeçar. Percebi que, se ficasse resmungando, me lamentando, me queixando da sorte, não iria muito longe, observa Luiz. Já que tinha de viver numa cadeira de rodas, que essa vida fosse a melhor possível. Por isso, terminado meu período de reabilitação, voltei ao esporte. Se aos 16 anos eu fora impedido de ser um atleta, por que não ser um atleta aos 18?
O judô, definitivamente, estava fora de questão: não há prática de defesa pessoal em cadeira de rodas. Mas havia o atletismo. Partiu da treinadora Sandra Peres a ideia de inverter em Luiz os termos do emprego da força em esportes tão diferentes como o judô e o atletismo. No primeiro, a ação é feita no ponto de equilíbrio do adversário, pegando-o em cima e projetando-o para baixo. Nas provas de arremesso ou lançamento, dá-se o contrário: a força é empregada de baixo para cima. Assim, o que era um recurso errado no judô, passava a ser um trunfo no atletismo. Convencido disso, Luiz começou a trabalhar com Sandra nas provas de disco, peso e dardo. De início, com dificuldade. A discriminação ainda era muito grande, diz Luiz ao lembrar como era o para desporto na década de 80. A gente só faz esporte hoje por uma decisão política do passado. As pessoas geralmente achavam, e muitas ainda acham, que o deficiente não tem potencial para ser atleta. Éramos os coitadinhos. Pode acreditar que foi para mudar esse quadro que começamos a praticar esporte.
É a essência do espírito do triunfo. Transformando-se de coitadinho em campeão, o deficiente passou a mostrar, inclusive fora do país, que seus limites não iam só até ali. Mais importante: Luiz não tem qualquer dúvida quanto ao fato de ser o esporte a única forma de manter o que conquistou com a reabilitação. Em 1982, quatro anos após o acidente, ele já integrava a equipe brasileira no Campeonato Parapanamericano, em Halifax, Canadá. Uma equipe de 14 pessoas, sem agasalho, ameaçada de só levar camiseta para enfrentar o frio do lugar. Não fosse uma cotização entre os simpatizantes, não se teria uniforme para os atletas. Mais uma colaboração, aqui e ali, e conseguiu-se bordar o nome do Brasil no uniforme. Ajuda oficial? Nenhuma. Apesar disso, 28 medalhas foram ganhas pelos brasileiros em Halifax, média de duas por atleta. Luiz garante que brotou ali sua fé no esporte como instrumento de afirmação do deficiente, ponto de partida para alcances maiores: a aceitação, a educação, a inclusão, a profissionalização, a discussão, a legislação, o ser cidadão. Ganhei nova vida, mas não uma vida fácil, pondera. _ Uma vida de sacrifício, de desafios constantes, de muita responsabilidade, pois é o que o esporte nos exige. Pensava assim: ganhei, com essa nova vida, um presente, agora é preciso valorizar, administrar, preservar esse presente. Nunca mais me afastei do esporte. Por dez anos Luiz competiu, no Brasil e no exterior. Ganhou nove medalhas paraolímpicas, seis de ouro e três de prata, e muitas outras, internacionais, de lançamentos, arremessos e pentatlo. Estabeleceu em Barcelona novo recorde mundial do lançamento de peso (9,03 metros), marca que lhe daria medalha de prata em Atenas. Só que aquela, a de 1992, seria sua última Paraolimpíada. Sentindo que já era tempo, aposentou-se. Da prática do atletismo, evidentemente, mas não do para desporto: Já que vim tão bem até aqui, competindo, tenho que continuar indo bem, lá fora, foi seu raciocínio ao guardar pesos e dardos de campeão.
A psicologia, em que se formou em 1999, ajudou-o bastante na fase em que o campeão deu lugar ao dirigente. Em tempo: dirigente, no presente contexto, não deve ser confundido com o dirigente esportivo tradicional, o chamado cartola, que é o oposto do cidadão que efetivamente dirige, pensa, constrói, trabalha, edifica, dá exemplo, lidera. Numa palavra: Luiz. Sobre quem ainda há mais a falar adiante. ...................................................
De volta a Luiz, ressalte-se que ele é parte do IBDD desde a primeira hora. Quer dizer, desde que Teresa o convocou para trabalhar na pequena sala ao lado da igreja de Nossa Senhora da Glória, como primeiro coordenador de esportes, quando Antônio Tenório e Ádria Rocha Santos, com quem tinha estado em Atlanta, eram os únicos atletas patrocinados. Na época, ainda trabalhava junto ao Comitê Paraolímpico Brasileiro e conhecia como poucos os problemas do para desporto. Como atleta, tinha vivido um tempo mais difícil, de amadorismo sonhador, mas inconsequente, sem dinheiro para nada. Não existia ainda a Lei Piva que hoje destina ao paraolímpico 15 por cento dos 2 por cento que as loterias devem repassar aos esportes (a maior fatia, 85 por cento, vai para o olímpico). Nem havia patrocínios que permitissem a profissionalização de um judoca e uma corredora cegos, casos de Tenório e Ádria. Luiz soube perfeitamente adaptar-se à nova ordem. Trabalhando no IBDD, descobriu que o esporte, além de contribuir com a recuperação do deficiente, podia ser um meio de vida para o atleta mais aplicado, ajudando-o a preparar-se para o futuro e a tornar-se um cidadão. – Aqui encontrei todo o amparo, toda a garantia de que o amanhã existirá – diz Luiz. – E existirá para muitos. Se esse amanhã será bom, depende de nossa mobilização.
Mobilização é com ele mesmo. E em vários patamares. É tão evidente que Teresa o substituiu na coordenadoria de esporte para tê-lo mais perto, líder e símbolo valiosos, indispensáveis. Como assessor da superintendência, uma de suas tarefas é lutar para mudar o que está errado no país. – Dentro de nossa proposta política – esclarece, – fazemos uma revolução em silêncio, aos poucos. Mudando a legislação sobre a educação inclusiva, melhorando a questão da saúde, adaptando o transporte e os prédios às nossas necessidades. A isso se some a contribuição do esporte, na qualidade da prótese e da cadeira de rodas. Antes, essas cadeiras eram pesadas, grosseiras, produzidas em fábrica de carrinho de feira. Quebrava-se um eixo por semana. Hoje, são de fibra de carbono, leves, menos de 4,5 quilos, feitas para correr. E a perna mecânica já permite ao paratleta fazer 100 metros em 11 segundos, tempo que já foi recorde olímpico de não-deficiente. Uma revolução que dá a Luiz a certeza de que ele e seus pares estão transformando a sociedade brasileira.


 

 

 

 

 


 

 

Luiz Claudio Pereira

Teresa Costa d'Amaral - Superintendente do IBDD

 
 
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